Orelhas de Van Gogh (fragmento)
I.
Como gamo
ideias esgalhadas
é tudo quanto sei
do que não é o um
do que foi fugaz
e frágil
às miras
de quem as cabeças como
troféus queriam
é tudo quanto sei
do que não foi unicórnio
mas esgalhados
labirintos
II
A vida é mais
vã semente que fruta
É uma romã
Cuja árvore do coração
curva
E o pensamento doura
e dura.
Mais casca que fruta
sua estrutura
Quase estéril
Quase pedra que pesa
Tão densa e dura
III.
Não, não quero falar do tempo
dos relógios
esse que às voltas nos esquece.
Quero é nosso tempo
de corpos unidos
unindo os triângulos velosos
dos nossos sexos
pela parte mais fina:
esse nosso tempo de clepsidras
gota a gota nos marcando
por dentro a carne.
Esse tempo de coração mais
coração, relógios
entre si ligados e invertidos.
Quero o que, num átimo
escoa, coa
e no pensamento agora vaza.
Esse tempo dissolvido, líquido,
é o que meu sexo conta-gotas
quer mais agora.
Pois nada, enfim, se cristaliza
entre nós
em possível vez e hora de ampulhetas
em tempos de clepsidras
Como gamo
ideias esgalhadas
é tudo quanto sei
do que não é o um
do que foi fugaz
e frágil
às miras
de quem as cabeças como
troféus queriam
é tudo quanto sei
do que não foi unicórnio
mas esgalhados
labirintos
II
A vida é mais
vã semente que fruta
É uma romã
Cuja árvore do coração
curva
E o pensamento doura
e dura.
Mais casca que fruta
sua estrutura
Quase estéril
Quase pedra que pesa
Tão densa e dura
III.
Não, não quero falar do tempo
dos relógios
esse que às voltas nos esquece.
Quero é nosso tempo
de corpos unidos
unindo os triângulos velosos
dos nossos sexos
pela parte mais fina:
esse nosso tempo de clepsidras
gota a gota nos marcando
por dentro a carne.
Esse tempo de coração mais
coração, relógios
entre si ligados e invertidos.
Quero o que, num átimo
escoa, coa
e no pensamento agora vaza.
Esse tempo dissolvido, líquido,
é o que meu sexo conta-gotas
quer mais agora.
Pois nada, enfim, se cristaliza
entre nós
em possível vez e hora de ampulhetas
em tempos de clepsidras
Orelhas de Van Gogh
Há poetas que enfaticamente se entregam à procura de novos rumos, preocupando-se com a técnica de impacto para assombrar e obter adesões instantâneas.
Muitos encontram a estreita via, o atalho ainda que lhes falte a enunciação poética como uma constante e uma necessidade, até como agregação à memória coletiva. Descobrem o processo sem desenvolver a linguagem estabilizadora de um dizer poético convincente e eficaz. Falam em romper com a tradição, mas não definem a que tradição pretendem opor-se, pois há tradição para tudo, inclusive a tradição de ruptura.
Silvio Pires projetou-se inicialmente pelo experimentalismo de choque, a que não faltou forte inspiração satírica. É memorável a sua “poesia em conserva”, cujo conteúdo são “sete palmitos poéticos, aromáticos, com 61 poemas impressos em poliestireno à prova d’água”. O comentário final do rótulo é hilariante: “e naquele chuvoso 7 de setembro a poesia pediu água.”
Puro artesanato é a contrafacção que fez de um maço de cigarros, valendo-se de uma expressão publicitária com que os veículos de massa nos bombardeiam. Fez a “poesia king size”, com “20 poemas enrolados.”
Agora Silvio Pires, com “Orelhas de van Gogh”(São Paulo. Ed. Abdo & Associados, 1983) só no título indica o inusitado: faz do novo um encontro natural, não uma astúcia para chocar.
Seu universo poético ora encerra marcante faixa lírica, ora compreende brusca apreensão do social. Tudo numa linguagem desnorteante, assinalada por elipses, imagens cruzadas, idéias repentinamente emergentes, iluminações desencontradas, num jogo levemente surreal ou mesmo caleidoscópico. Um longo fio confessional liga o volume de ponta a ponta, as 348 páginas de poemas.
Nada, entretanto, dá a impressão de um ludismo fácil ou espontâneo. Tudo reflete, antes, árdua construção, fruto de conquistado domínio da palavra. A boa gramática é uma de suas forças.
Não faz um discurso transparente.
Antes se torna às vezes opaco, abrigando-se no hermetismo. Mas pode-se extrair do conjunto o sumo de uma elegia existencial, de um erotismo fosco ou de um protesto político/social. Mas sem panfletagem ou apelo sentimental.
“Orelhas de van Gogh” confirmam que a vera poesia é a instância da metáfora. Basta que se abra o livro ao azar: “De tarja negra nos olhos a noite/e seus gatilhos/a disparar pelas pernas o coração.” (p.326)
O depoimento existencial atrai o leitor a cada passo, pelo seu cortante pessimismo: “Quanto mais se vive/ mais a memória parece recuar/ Para a perda.” (p.339)
A remissão para a infância constitui um dos fatores mais densos de verbalização, no interior do processo de convergência do drama existencial com a palavra: “Ruas de infância, perdido paraíso/ labirinto de que saímos/ Para outros labirintos, íntimos.” (p. 104)
Não esquecer a visão “moderna” de Silvio Pires, a angulação com que contempla a paisagem física e humana, aliada ao gosto do paradoxo e da ironia: “Cemitério de neon, inscrições, cidade./ Céu de cinco estrelas já” (p.149)
O lirismo de Silvio Pires está impregnado de categorias pós-modernas. O grotesco, por exemplo.
De vez em quando, sua metáfora dispara por caminhos arrevesados: “verdes arbustos expectoram pardais” (p.111); Mais adiante: “E os direitos civis das pombas/ a sujar os bustos da memória.” (p.170); O poema da p.296 ilustra bem a articulação do grotesco. Mas “Orelhas de van Gogh” são, sobretudo, um livro sério. Testemunham o encontro da vocação com o preparo. O tom crepuscular por vezes se infiltra no meio da alegria das metáforas e do gume da sátira. As duas últimas páginas, por exemplo.
Ao tecer o livro, Silvio Pires oferece agudas reflexões sobre o fazer poético: “O poeta destece a rede da noite/ e sempre acorda os galos” (p.341), pois tem consciência da função auto-fundadora do tecido verbal: Sonhos e ilusões, é certo, caem/ feito moscas/ Mas eu ainda/ sou aranha de mim,/ que aranha maior entretece” (p.53)
Fábio Lucas
Fábio Lucas é escritor, crítico, membro da Academia Paulista de Letras e Presidente do Conselho da União Brasileira de Escritores. Ex-Diretor do Instituto Nacional do Livro. Apontado como um dos mais importantes críticos e conferencistas internacionais de literatura brasileira.
Já tinha gostado de Poesia King Size e Poesia em Conserva, Aliás, eu tinha é achado muito engraçado a história de afogar alguns poemas em água sem óleo ou dar umas baforadas em uns possíveis versos de inegável romantismo. O Piresh deu a saída: embrulha-los.
Agora ele lança os restos finais das Orelhas de van Gogh:Seria talvez a sobremesa, ou o reinício da refeição.
Sim porque o Piresh tem muito de canibal. Basta se aventurar por essas trezentas e tantas poesias escritas seguidamente para se dialogar com diferentes sotaques de fome e loucura. Estranho é o Piresh ter tanto rigor à mesa, sem jamais sujar o guardanapo ou deixar cair os talheres no chão. E ainda dispensar os palitos.
Brinco. O Piresh tem coisa rara em poeta brasileiro: o amor à recriação da linguagem. Ele está atrás de um vocabulário, mesmo quando bisa algo já dito atrás. Isso é importante, ele afiando sua personalidade literária/poética. Em dias de muito coletivo, o Piresh é individual. Dá um riso discreto e enfia a faca. Pode ser desvario. Mas tem minha ajuda, o Piresh.
Miguel de Almeida
Jornalista, escritor
Silvio Piresh pertence àquela família de poetas que desidratam a linguagem e pulem as palavras.
Sua preocupação não é de que entendamos claramente o que ele diz: quer nos fascinar com suas elipses e metáforas e quase sempre o consegue.
Ferreira Gullar
Poeta
Sua Poesia, ereta, netuna cabala, segue a trilha do marfim. Força é planejar a loucura, valise sem alça. Parabéns pelo belo livro, em conteúdo e em feitura (pelos créditos também de sua responsabilidade).
Olga Savary
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