segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O Cristo Rosa

O Cristo-Rosa
(fragmento)

Silvio Piresh

"Pegaram a mulher pra Cristo.

Foi como ressuscitar de um sonho. Um que a vontade é de gritar mas que se fica mudo. E que nunca que a gente desperta. Uma eternidade. Um longo estado de coma. De certa forma é assim que me sinto hoje depois de todos esses anos.

De olhos fechados, pude ouvir tudo o que se passava ao redor. Meus ouvidos de dentro sempre abertos, rosas bifoliadas. Nunca deixei de ouvir o que se falava naquele quarto. Nem em qualquer lugar onde se pronunciava meu nome.

Meu cérebro ainda funcionava, bem até. Mas eram só os olhos de dentro que agora podiam ver. Tentava me ver de fora: o pequeno sorriso das pálpebras, cerradas. Tudo era inércia. Queria abrir os olhos, faltava força. Onde a vontade própria? E o pior sentimento.

Enfim, podia ouvir, sentir o cheiro, o calor humano e volta e meia o carimbo de um outro lábio nas minhas mãos ou face. Esse o melhor calor, por si só razão de viver. Mas confesso que nunca desisti, mesmo em estado vegetativo.

Mesmo Deus ter esquecido de mim. Que outra razão explicaria o fato. Falhei. Mas era possível o contrário? Essa pergunta não cala nem quer. Talvez porque um futuro que o Pai, como qualquer pai, quer para o filho. Um sonho que só Ele sonha. E que não é o mesmo do filho.

Por essas que hoje estou aqui. Pior é depois de todos esses anos a simples lembrança ainda ser igual à dor da cruz. Esse punhal de madeira fincado no chão, aprisionando um corpo também em forma de cruz. Meus olhos procurando espetar cada estrela, mas se precipitando aqui, no cravo dos pés.

Nesse instante fechei os olhos para nunca mais os abrir. Dor tanta que entrei em coma. Foi como se tivesse morrido para todos. Aí não senti mais nada. Nem quando tiraram a coroa ou outros espinhos. Se agora não sentia dor, por outro lado, podia sentir tudo. Inclusive a trama do linho que José de Arimatéia envolveu o meu corpo.

... "


O Cristo Rosa - Resenha de Fábio Lucas
Ao título do seu romance O Cristo Rosa (São Paulo, Editora do autor, 2002), Silvio Piresh acrescenta outros dizeres que ajudam a decifrar sua mensagem. Além da bela capa com um rosto colorido de mulher sensual, temos o subtítulo: “Biografia não-autorizada da Menina Jesus”. E no frontispício da obra: “Pegaram a mulher pra Cristo”. Estranha ficção, no meio da qual brotam idéias. Longe estamos de Zola e seus parceiros, comprometidos com o estudo monográfico dos fatos. Mas de um texto reflexivo, a que não faltam os ingredientes sedutores da trama bem construída e da fantasia liberta. Não é que nos defrontamos com a metamorfose do Cristo numa simples mulher crucificada? São longos os caminhos para chegar àquele ponto. Diremos que assim se faz o texto reflexivo, na justa combinação de literatura e entretenimento. O prazer não vem apenas da trama bem articulada ou do caso bem relatado. Provém do teor ideativo, filosófico do relato. A leitura tanto pode aguçar os instintos, como ativar a sede do saber. Na beleza da obra realizada devem confluir os prazeres do corpo e do espírito. Sabemos que a narrativa singela resume-se no despertar do manancial de Eros e no engenho de ajustar os episódios da trama. Já a narrativa superior vai à fonte do saber que jorra do texto iluminando-o com o passado do gênero, a jogar o fulgor da memória sobre as cambalhotas da imaginação. Sonhos ativados pelas lembranças. Assim, o texto de cunho reflexivo acende a curiosidade do leitor em muitas dimensões, apontando-lhe caminhos e associações. O Cristo Rosa põe em questão a natureza de todos os mitos. Brinca de invertê-los, acrescentando a cada mistério outro mistério. Mais do que isso: o romance traz o poder do símbolo, com toda a sua carga ideológica de crítica histórica e social. A Igreja Católica é posta no tribunal. O leitor diverte-se e se comove. São hilariantes as citações em latim. Nasce e morre um novo Cristo, relator da crucificação da mulher na civilização cristã. Após dois milênios de torpor, crueldade e omissão.

FÁBIO LUCAS




O Mito Subvertido - Por Levi Bucalem Ferrrari

O português aporta em terras exuberantes onde finca uma cruz sob os extasiados olhares dos nativos nus e formosos, os quais seriam logo escravizados em nome da mesma cruz. O espanhol finca outra cruz no coração de incautos incas, astecas, maias. O protestante anglo-saxão vai matando ou expulsando para o Pacífico homens de pele avermelhada que não sabiam que só o trabalho salva ao mesmo tempo que acumula riquezas.
E não há mais dúvidas: o cristianismo, na versão católica ou protestante, é o mito fundador da civilização ocidental, de sua expansão e hegemonia. Lembram dos cruzados matando em nome desse Deus? Da Santa Inquisição…
Também porque o mito é forte, o mais bem bolado de todos. Um Deus que nasce pobre, filho de trabalhador, e morre torturado e humilhado pelo império global da época, o romano. Logo a vingança, a consolidação do mito: O Deus pobre ressuscitará e, prometendo a salvação das almas, constrói sua Igreja, o Poder que não se contesta, posto que transcendente à vida e aos negócios dos homens. A igreja, que tomará por baixo o Império Romano, e reinará soberana sobre a Europa por mais de mil anos. Sob outras roupagens, o cristianismo será a justificativa dos novos Impérios ocidentais. Vamos bombardear o Iraque em nome da civilização cristã e do petróleo.
Mas o mito tem uma falha fundamental. Se o Cristo, pelo menos do ponto de vista social, teria que ser a representação do mais humilhado dos seres humanos não bastaria ser pobre e filho de um povo submetido ao Império Romano. Teria que ser mais que isso, o ser que nem ser era: a mulher, essa coisa feita apenas para gerar e amamentar filhos homens e para submeter-se a quaisquer vontades de seu amo e senhor, por acaso marido. Os antigos judeus, ao rezarem, agradeciam a Deus “o pão nosso de cada dia e o fato de não terem nascido mulher”.
A submissão da mulher, alguém já o disse, de tão histórica se pretende natural. Então Marx que me desculpe, mas a última revolução não será a dos operários, será a da mulher, o ser mais explorado e humilhado na quase totalidade das culturas, aquela que, agora sim, ao se libertar, libertará o mundo.
Ao desnudar a origem do mito fundador de nossa civilização, Silvio Piresh, em O Cristo Rosa – biografia não autorizada da menina Jesus, traz à tona a falha fundamental. E, em busca de maior coerência, imagina um Cristo mulher ressurecto dois mil anos depois. É ele, ou melhor, ela mesma, quem nos revela o último dos sacros segredos: teve que se travestir em homem, na primeira versão, caso contrário ninguém lhe daria ouvidos.
A menina Jesus sofrerá humilhações semelhantes às que sofre enquanto falso menino, agora por parte da própria Igreja que se fez sobre seu nome. Se indignará contra as injustiças que, assim justificadas se perpetuam. E o resto se sabe ou se imagina.
O fato é que Sílvio Piresh, querendo ou não, antecipa a tão aguardada, tão necessária revolução da mulher.



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